A CASA, A ENCHENTE E O GATO
Dizem que a minha casa é assombrada. Não me importo.
Depois de mais de 30 anos abandonada, acredito realmente que ela tenha seus fantasmas.
Mesmo porque, o cemitério, esquecido há décadas, fica logo ali, no topo do morro.
Acordo de madrugada com barulhos estranhos, mas que com o tempo deixam de me assustar.
Barulho de vivo, de morto, não importa.
De vivo, pode ser a capivara e seus filhotes fazendo a festa no mandiocal, do cachorro da fazenda vizinha que atravessa o rio em busca de restos de comida no quintal.
Bicho homem, com maldade no coração, tenho medo, mas me apego à proteção divina e dos meus vizinhos espíritos a quem também peço guarda.
Xatran, gato siamês emprestado pela minha mãe nas minhas férias, é silencioso até no andar.
Passos de bailarinha, de quem pisa em ovos, quando resolve mudar o cardápio e arma o bote.
Deixa a ração de lado e corre atrás de qualquer coelho ou preá que percebe no meio do mato.
Certa madrugada, um silêncio estranho me acordou.
O barulho da cachoeira no rio em volta da casa parou.
Da janela não pude ver o que acontecia.
O bréu era assustador.
A lua havia se recolhido atrás de uma cortina de nuvens negras.
Voltei a fechar a janela verde que se abre em par.
Preciso pintá-las por dentro também, decido, lembrando que a descasquei com a unha para saber a sua cor original e ser fiel ao gosto do seu primeiro dono, Domingos de Albino, Valdo Bedeu, sei lá.
Observo as paredes brancas que no passado eram apenas caiadas.
Volto a dormir.
Escuto o barulho da chuva fina no telhado novo, sem forro.
Sinto no rosto descoberto o frescor pulverizado da cumeeira.
Chuva no telhado, cantiga de ninar.
Apago a luz e volto a dormir.
O dia nem clareou por completo e já estou de pé.
A passarada me desperta.
Volto a abrir a janela verde e só então, com o despertar do dia, descubro a enchente que tomou conta da baixada.
As duas cachoeiras, uma de um lado, outra do outro, no rio que faz 'L' em volta da casa, sumiram por completo debaixo de um mundaréu de água.
Penso logo na bomba d'água, submersa no Rio Alcobaça, amarrada aos pés de uma engazeira. "Foi levada pela correnteza", penso.
Ligo o interruptor atrás da porta e me acalmo com o barulho da água chegando à caixa.
A bicharada assanhada procura proteção nas partes mais altas.
Tenho medo das cobras. Já expulsei duas, do telhado e da cozinha.
Faz frio.
Volto para a cama à espera do calor do sol, que ainda é morno.
Xatran se aproxima e finjo dormir.
E ele, de passos lentos, pula na cama, prepara o cobertor com as unhas e se aconchega, olhando-me atentamente, com medo de me acordar.
Não resisto, abro os olhos e sorrio.
"Seu bobo, pode ficar!", permito.
E ele aproxima, fazendo afagos, e dorme.
Mais um dia na fazenda.
Bom dia, dia....